ENCICLOPÉDIA SIMPOZIO (Versão em Português do original em Esperanto)
CAP. 3
SOCRATES (469-399 a.C.). 8310y103.
- A Sabedoria no tempo de Socrátes -
Ainda que Sócrates nada houvesse escrito, foi um elemento de expressão social, com notória influência na opinião, sobretudo ainda porque tenha sido prestigiado pelos escritos de Xenofonte e Platão. Colocado como dialogante nos escritos de Platão, exerceu Sócrates a posição de ator principal do debate filosófico si período.
Diante disto há a considerar:
- Vida de Sócrates (vd 8310y105);
- Fontes do pensamento socrático (vd 8310y121).
- Doutrinas de Sócrates (vd 8310y133).
§ 1. Vida de Sócrates. 8310y105.
106. Sócrates (G T 6 D V J 0 H ) (469 – 399 a.C.) viveu em plena "ilustração grega" e ao tempo dos sofistas.
Alcançava 70 anos ao finarem seus dias em 399 a.C. A partir desta idade se calcula haver nascido no ano 469 a.C.
Nas últimas décadas de sua vida influenciou fortemente o pensamento grego, dando origem no plano filosófico, ao chamado "período socrático". Ao tempo de sua morte Platão já tinha 28 anos e continuavam vivos os sofistas Protágoras e Górgias.
É evidente que a formação do período socrático fora resultado de todo um processo de fatores confluentes, e que não dependiam de um só homem. Maior do que Sócrates seriam Platão e Aristóteles. Todavia Sócrates está cronologicamente no início do processo, e o retrata adequadamente, justificando-se a tomada de seu nome para denominar o seu tempo.
Foi Sócrates notável filósofo grego, não tanto pela erudição, mas pelo espírito combativo e educador, que o caracterizou. Ainda que nada houvesse escrito, influenciou largamente a filosofia do seu tempo, chamado – como se disse – período socrático, em que se inserem como seus admiradores as personalidades do período, Platão e Aristóteles, enquanto os outros períodos fizeram-se conhecidos como pré-socráticos e pós-socráticos.
107. Foi Sócrates o primeiro filósofo de quem se conhece um grande número de dados biográficos, reunidos ultrapassam em extensão os interesses da história da filosofia.
Contudo não dispomos de todas as informações que efetivamente interessam. Pouco se sabe de sua juventude, nem dos seus primeiros mestres.
108. Nasceu Sócrates cidadão de Atenas, e pertencia ao demo de Alópeca (D. L., II, 18).
Tendo tido 70 anos ao tempo em que foi condenado a morte (Apologia 17 d) em 399 a.C., infere-se haver nascido em 469 a.C. , ou mesmo em 470 a.C.
Os progenitores de Sócrates eram de condição pobre; o pai, Sofronisco, exerceu a profissão de escultor; a mãe, Fenerete, a de parteira.
109. Família de duas esposas. Num primeiro matrimônio foi Sócrates casado com Xantipa. Sua outra mulher chamava-se Mirton, sendo posterior, ou anterior, mais provavelmente simultânea, de acordo com uma lei excepcional, quando da escassez de homens para repovoar Atenas dos homens que houvera perdido nas guerras, dentre as quais a do Peloponeso fora a mais desastrosa. De Nirton lhe nasceram Sofronisco e Menéxenes.
Tais informes chegaram até nós através de Diógenes Laércio, este do 3-o século d. C., que as colheu em autores mais antigos:
"Segundo Aristóteles teve duas mulheres: a primeira, Xantipa, da qual teve Lâmpocles; a outra, Mirton, filha de Aristides o Justo, que ele tomou sem dote e deu à luz Sofronisco e Menéxenes. Alguns asseguram, que Mirton foi a primeira, como Sátiro, Jerônimo de Rodes; outros, dizem que teve as duas mulheres ao mesmo tempo. Diziam que a escassez de homens e a necessidade de repovoar a cidade obrigaram aos atenienses a promulgar um decreto, que autorizava a cada cidadão tomar, além da esposa legítima, outra mulher, e a ter filhos dela. Sócrates acolheu este decreto, segundo ditos autores" (D. L., II, 24).
Foi dito da primeira mulher de Sócrates, Xantipa, que fora de difícil temperamento. Ele também o era, ainda que mais humano. A Lâmpocles, filho deste primeiro matrimônio, ensinou a paciência e a submissão à mãe (Xenofonte, Ditos Admiráveis II, 19).
110. Escultor por profissão. Inicialmente foi Sócrates modesto cidadão. Como filho de escultor, adotou inicialmente a profissão paterna.
"Assegura-se que é o autor das Graças que na Acrópole se representaram cobertas de sua nudez" (D. Laércio, II, 19).
Esta informação de que as deusas estavam cobertas de sua nudez coere, porque a representação estética das deusas nuas fora introduzida apenas no período helênico posterior.
O exercício da arte habituou certamente Sócrates nos temas humanos, peculiares ao seu exercício. Já era o humano uma tendência do tempo por influência da sofistica, da qual Sócrates participou como um crítico. É possível que também no curso de toda a sua vida utilizasse a escultura ou outro artesanato, como instrumento de sua subsistência.
Refere-se às mãos como um dom que permite fazer a maior parte das coisas pelas quais nós somos mais felizes que os animais (Xenofonte, Ditos Memoráveis I, 4).
A sensibilidade estética pela beleza do corpo humano é peculiar do grego antigo e se revela em Sócrates no curso dos diálogos platônicos e referências de Xenofonte e ela pode ter origem na sua função de escultor.
111. A formação de Sócrates. Até cerca dos seus 40 anos Sócrates terá sido um autodidata assimilador dos conhecimentos que poderia então conhecer no ambiente em que vivia na cidade de Atenas, ao mesmo tempo que exercendo a sua profissão de escultor e dela tirando também rendimentos intelectuais.
Depois desta idade, portanto pelos anos de 430 a. C., terá principiado a doutrinação filosófica moralizadora de Sócrates. Iam então já desaparecendo alguns dos mais significativos grandes pré-socráticos, como Empédocles (+432 a.C.) e Anaxágoras (+428 a.C.). Também ia terminando a brilhante gestão de Péricles (+429 a.C.), arconte de Atenas, ao mesmo tempo que se passava aos anos difíceis da guerra do Pelopenoso, na qual Esparta ia tirando vantagens.
Deu-se, pois, a formação de Sócrates, ao mesmo tempo que discutia com o público do seu ambiente assuntos humanos. Não obstante, é possível também que tivesse tido alguns mestres bem definidos (vd 116).
"Sempre estava no público. De manhã cedo ia aos ginásios. Quando a praça estava cheia era visto ali.
Durante o resto do dia sempre se podia encontrá-lo onde havia mais gente ali falava muito e quem queria podia escutá-lo" (Xenofonte, Ditos Memoráveis).
Passando a exercer a retórica, as informações o dão como versátil mas com envolvimentos diversos, inclusive com tumultos.
"Timon diz dele em Poemas satíricos: Destas Graças descende, o cortador de pedras, o parlador das leis, o oráculo da Grécia, o Sábio pedante, o ateniense refinado.
Idomeneo atesta que era veemente na retórica. Os trintas tiranos o proibiram de ensiná-la, refere Xenofonte. Aristófanes o moteja pela habilidade de transformar em boas as causas más.
Segundo Favorino em Histórias Diversas foi o primeiro a ensinar retórica, ajudado por seu discípulo Esquines; confirma-o Idomeneo em História dos discípulos de Sócrates. Foi também o primeiro a ensinar moral e o primeiro a ser condenado pela justiça. Aristoxeno diz que era muito cuidadoso em juntar dinheiro. Que retirava logo o interesse e o capital.
Demétrio de Bizâncio anota que foi Criton que o retirou da oficina de entalhar, aplicando-se a instruí-lo por se ter seduzido pelo seu espírito. Mas depois reconhecido a pouca utilidade prática das teorias físicas, dedicou-se a dissertar sobre a moral nas oficinas e nos lugares públicos. Dizia que somente buscava uma coisa: em que consiste o bem e o mal em sua vida particular.
Os excessos nas discussões lhe davam muitas vezes dissabores; pegavam-no e lhe arrancavam os cabelos, outras vezes mofavam dele. Sofria porém tudo com paciência. Tendo recebido um pontapé, permaneceu impassível, e, frente a admiração de alguém, disse:
Se um asno me desse um coice, deveria eu citá-lo na justiça? Até aqui Demétrio" (D., L., II 20-21).
Foi neste contato com o público que Sócrates foi aprendendo no embate direto da discussão. Praticava também a leitura, conforme também há notícias. O dominante é seu autodidatismo, que se aproxima com a pesquisa. Era um "operário da filosofia" (" Û J @ L D ( ` H J H N 4 8 @ N \ " H ), como diz Xenofonte (Simpósio, 1, 5).
112. De quem discípulo? Pode-se afirmar que Sócrates fora discípulo de alguns filósofos do seu tempo, como dos jônicos, ainda que passasse a colocações próprias.
Os contatos com alguns intelectuais do tempo mostram a partir de onde derivam influências sobre Sócrates, dos quais alguns atuavam em Atenas. A partir dos filósofos jônicos, que são físicos, e mais dos sofistas, que também circulavam em Atenas, criou Sócrates sua nova síntese.
"Sócrates foi discípulo de Anaxágoras segundo alguns e também de Damon, segundo Alexandre, em seu Sucessão dos filósofos. Depois da condenação de Anaxágoras, se uniu a Arquelau, o Físico, chegando a ser seu favorito, segundo Aristoxeno" (D. L., II,19).
Quanto a Arquelau, era da mesma diretriz:
"Arquelau, de Atenas ou de Mileto, filho de Apolodoro, ou segundo outros, de Mison, foi discípulo de Anaxágoras e mestre de Sócrates. Foi o primeiro que levou da Jônia para Atenas a filosofia física (ou natural). Por esta razão o chamaram o Físico, ou seja que nela terminou a filosofia física, introduzindo então Sócrates a moral. Parece que também Arquelau a cultivou, pois sendo filósofo das leis do bem e do justo, o que, tendo sido ouvido por Sócrates, a ampliou e propagou, e foi por isso tomado como autor dela" (D., L., II, 16).
O contato com Heráclito de Efeso também foi anotado, em circunstâncias que mostram igualmente seu convívio com o poeta Eurípedes:
"Não teve necessidade de viajar, como a maior parte dos filósofos. Exceto a participação em algumas expedições, sempre permaneceu no mesmo lugar, discutindo sem descanso com seus amigos, preferindo descobrir em comum a verdade a combater as opiniões alheias. Como Eurípedes lhe desse a ler uma obra de Heráclito e lhe pedisse a opinião sobre ela, contestou:
O que tenho compreendido é muito bom e suponho que o seja também o que não entendi; para isto é necessário um nadador de Delos" (D., L., II, 22).
Apesar de haver viajado pouco,
" Ion conta que durante sua juventude fez uma viagem a Samos em companhia de Arquelau.
Favorino assegura em livro primeiro de seus Comentários, que visitou o Istmo de Corinto, e Aristóteles, que visitou a Delfos" (D. L., II, 23).
Além disto, Sócrates fel algumas longas marchas militares, inclusive uma à Pérsia (vd 117).
113. Envolvimento militar. No contexto político e militar de sua época esteve Sócrates envolvido nas guerras contra Esparta, líder das cidades do Peloponeso.
Na primeira fase da guerra da guerra do Peloponeso (431-421 a.C.), Sócrates tomou parte nas batalhas infelizes de Potidéia e Délium.
Já depois da primeira fase da guerra, participou das "façanhas dos dez mil" gregos, quando Ciro (o moço), sátrapa da Lídia, tentou, mas em vão, a sucessão do trono da Pérsia. Sócrates e Xenofonte comandaram a retirada.
Esparta com a guerra do Peloponeso, ganhara terreno, passando a destruir a hegemonia de Atenas. Uma primeira fase desta guerra foi de 431 a 421 a.C., em que Sócrates participou como soldado nas batalhas de Potidea (431 a.C.) Delion (424 a.C.) e Anfípolis (421 a.C.).
A segunda fase corresponde à guerra da Sicília (421-413 a.C.) em que a frota ateniense também não é bem sucedida.
De 413 a 404 a.C. ocorrerá, o confronto direto das duas potências, em que Esparta vence a antes poderosa Atenas, na qual impõe um partido que governaria despoticamente e do qual Sócrates seria vítima.
Antes disto acontecia ainda a participação do já idoso Sócrates na "façanha dos dez mil", que politicamente antevia uma composição grega com o reino da Pérsia, por meio de um governante amigo que lá se instalasse. Esta oportunidade parecia ter vindo com a sucessão a ser estabelecida com a morte do rei persa Dário Noto, aliado de Esparta. Sucedera-o em 404 (a. C.) Artaxerxes Mnemon.
Entretanto, seu irmão Ciro, o moço, sátrapa da Lídia, como o apoio não só dos espartanos, mas também dos atenienses e Jônicos, alistando13 mil soldados gregos, marchou para a capital persa com o objetivo de alcançar o trono; juntos iam também Sócrates e Xenofonte.
No momento que Ciro ia matar à espada o seu concorrente ao trono, um dardo o apanhou na testa e o exército debandou. A partir de então ocorreu a retirada dos 10 mil gregos. A difícil retirada custou a vida de vários generais, havendo por isso Sócrates e Xenofonte tomado o comando do Exército.
114. A pessoa de Sócrates. Uma estátua do primeiro século a.C. (conservada no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque) o apresenta calvo e barba não muito longa, nariz ligeiramente largo. Este aspecto se depreende também das descrições de Xenofonte e dos diálogos platônicos, que o fazem ainda algo obeso e não muito alto, além de vigoroso.
Descreveu-se a si mesmo como um sileno (Xenofonte, Simpozio, 119), cuja figura apenas exteriormente não é agradável. De outra parte, era um homem vigoroso, atento aos exercícios ginásticos e capaz de participar da guerra.
"Dedicava-se aos exercícios corporais e tinha uma constituição vigorosa. Tomou parte na expedição da Anfipolis. No combate de Délion tendo Xenofonte caído do cavalo, ele o carregou nas costas; ainda que todos os atenienses que estavam juntos fugissem, retirou-se lentamente, cauteloso, ainda para fazer frente a quem o quisesse surpreende-lo.
Quando esteve incorporado à armada enviada a Potidea por mar, porque o inimigo havia interrompido as comunicações por terra, - foi então, dizia-se, que permaneceu toda uma noite imóvel em um mesmo lugar. Ganhou nesta expedição o prêmio do valor e o cedeu a Alcibiádes, cuja bondade o havia seduzido, dando-se crédito ao que Aristipo assegura no livro quarto, sobre a sensualidade antiga (D. L., II, 23).
115. Aceitação de si mesmo. Xenofonte, no episodismo que mais o atraía, em vez de nos apresentar coisas profundas da pregação de Sócrates, revela entretanto o retrato psicológico e mesmo físico de Sócrates ironizador e otimista em se aceitando a si mesmo como ele era, um homem de olhos e nariz feios, inclusive com uma boca de lábios mais feios que as de um asno:
"...Crês que a beleza existe só no homem ou ainda noutros objetos?
Creio, naturalmente, que ela existe num cavalo, num boi e em muitos objetos inanimados, pois costumamos dizer "um belo escudo", uma bela espada, ou uma bela lança.
Mas de que maneira poderemos explicar que os objetos tão diferentes sejam igualmente belos?
Se forem bem adaptados pela arte ou pela natureza ao destino que quisermos lhes dar no uso, são belos, - diz Critóbulo.
Sabes acaso, porque precisamos de olhos?
Evidentemente, é para ver.
Assim sendo, pode acontecer que os meus sejam mais belos que os teus.
Como?
Pois os teus não enxergam senão em linha reta, ao passo que os meus também vêem de lado, pelo fato de estarem à superfície da cabeça.
Segundo tua teoria, dentre todos os animais o que possui os mais belos olhos é o lagostim - seguramente, sem falar que seus olhos são dotados naturalmente de uma força estupenda.
Seja!
Mas em questão de nariz, qual é o mais belo, teu ou o meu?
Penso que seja o meu, se for verdade que os deuses nos tenham dado o nariz para cheirar.
Ora, tuas narinas são dirigidas para a terra, enquanto as minhas são arrebitadas, de maneira a receber os odores de qualquer parte que venham.
Mas não é possível que um nariz chato seja mais belo que um nariz reto.
Sim!
Pois em vez de servir de obstáculo, permite pelo contrário, aos olhos de ver primeiro o que querem, ao passo que um nariz proeminente separa-os como um muro.
Quanto à boca, - diz Critóbulo, - cedo-te a palma: se ela é feita para morder podes morder muito melhor que eu; e com teus lábios espessos, não achas que teus beijos sejam mais doces que os meus?
Conforme, o que dizes eu teria então uma boca mais feia que a de um asno? " (Xenofonte, Banquete, V).
116. O Demônio de Sócrates. Inteligente, apresentava Sócrates momentos de maior brilho e inspiração, dizendo-se tocado por um espírito (ou demônio). Este modo de apresentar a iluminação mental contém algo de pitagórico, ou órfico, ao estilo também do platonismo, do profetismo, do misticismo.
117. O mais sábio de todos os homens. Sem haver escrito, Sócrates emitiu frases de homem sábio, e que se conservaram na memória popular. Depois passaram ao papel, de sorte a se haverem conservado no tempo. Xenofonte escreveu mesmo um livro entitulado Ditos memoráveis de Sócrates. Muitos dos dizeres se referem à vida humana, e atestam sobre o mesmo Sócrates.
De costumes simples, Sócrates também o foi em tudo o mais.
"Era parco e honesto. Conta Pânfilo, no livro Sétimo dos Comentários que lhe havendo Alcibiades doado uma área espaçosa para edificar nela uma casa, a recusou, dizendo:
- Eu tivesse necessidade de uma sandália e tu me desses o couro para que as fizesse eu mesmo, não seria ridículo que eu o tomasse?
Muitas vezes se dizia a si mesmo, examinando a multidão de objetos que estavam à venda no mercado:
- Quantas coisas das quais não tenho necessidade!
Tinha sempre em seus lábios os versos seguintes (de Filemon):
- A prata e a púrpura são úteis para o teatro, porém inúteis para a vida" (D. L., II, 25).
Era um homem versátil, com múltiplas capacidades:
"Quando teve a oportunidade, aprendeu a tocar a lira, dizendo que não era vergonhoso aprender o que não sabia.
Frequentemente dançava, e dizia que era útil para conservar saúde. Como informa Xenofonte em O banquete" (D. L., II, 32 ).
A versatilidade era também mental e se refletia nos seus dizeres ou comentários, reveladores de uma sabedoria que se tornou proverbial.
"Instava aos jovens a que se olhassem frequentemente no espelho para, ao se verem formosos, se fizessem dignos de sua beleza, e, em caso contrário, esquecessem sua fealdade em troca da ciência e da virtude.
Um dia que convidara pessoa rica para comer, envergonhou-se Xantipa pela escassez da comida.
- Não te inquietes, lhe disse; se forem sábios e discretos, serão indulgentes; se não o forem, os deixaremos pelo que valem!
Dizia que os outros homens viviam para comer e que ele comia para viver; que fazer caso da multidão ignorante é imitar quem deixa uma moeda de 4 dracmas em troca de um montão de moedas falsas" (D. L., II, 33-34).
"Como alguém lhe desse a notícia de que os atenienses o haviam condenado à morte, replicou:
A natureza pronunciou contra eles a mesma sentença.
Esta resposta também se atribui a Anaxágoras.
Como sua mulher disse:
- Tu morres injustamente, - ele lhe replicou:
- Preferirias tu, que justamente?" (D. L., II, 35).
"Em certa ocasião, depois de havê-lo injuriado Xantipa, ela arrojou-lhe água ao rosto, ele lhe disse:
- Já o sabia eu, que tão grande tempestade não poderia passar sem chuva" (D. L., II, 36).
"Estas máximas e exemplos lhe valeram um elogio lisonjeiro por parte da pitoniza, que todo o mundo conhece:
- Sócrates, és o mais sábio de todos os homens" (D. L., II, 37).
118. Senador. Conquistou Sócrates posição política em Atenas, sobretudo ao retornar a paz, depois da perdida guerra do Peloponeso. Somente no final foi ser vítima do confucionismo político decorrente da influência de Esparta vitoriosa.
Passada a guerra do Peloponeso, sucederam-se regimes em Atenas, a base de agitações.
De 404 a 403 ocorreu o regime dos Trinta Tiranos, imposto pelo general espartano Lisandro. Crítias foi dos mais cruéis. Ao novo regime, considerado progressista, pertenceu Sócrates, eleito para o Senado. Mas Sócrates não suportou o terror praticado contra os cidadãos tradicionais, e renunciou.
O tirano Crítias foi dos mais cruéis. Alcebíades, mesmo no exílio, foi assassinado.
119. A revanche democrática. Tebas, comovida com o infortúnio da cidade de Atenas sob a tirania do Trinta Tiranos, houvera recebido os proscritos . Armando-os ainda para uma revolução, esta resultou na expulsão dos tiranos e restauração da democracia ateniense. Restaurada a democracia em 403, com apoio de Tebas, piorou contudo a situação de Sócrates.
A demagogia do governo democrático verteu-se contra os anteriores propugnadores progressistas e aristocráticos, que tinham por modelo Esparta.
A exacerbação tradicionalista condenou a Sócrates a pretexto de pervertedor da juventude, contrário aos usos e aos deuses. É este condenado, sendo-lhe imposto beber cicuta.
Platão, um jovem aristocrata de 28 anos e seu discípulo, abandonou temporariamente Atenas, em decorrência da situação política, como ele mesmo diz (Carta, 7-a). Em um outro texto, descreveu Platão a morte do sábio mestre, em página, que ficou sendo uma das mais comoventes da história da filosofia.
120. A acusação que levou Sócrates ao tribunal como réu de haver negado a religião do Estado e ter neste sentido pervertido a juventude, ocorreu no ano 369 a.C.
Seus principais acusadores foram Meleto, ateniense, e Lico, um retórico de quem nada mais se sabe.
O processo vem historiado por Platão em sua Apologia, redigido logo depois do evento. O texto, inicialmente defende Sócrates contra a acusação que já tempos lhe vinha sendo feita e a seguir contra a acusação atual, de Meletos formulada assim:
" Sócrates é culpável de corromper a juventude, de não crer nos Deuses do Estado, mas em divindades novas".
Atendendo simplesmente a estes termos, teria Sócrates sido condenado por conspirar contra a ordem existente, que é a opinião de Hegel; seria este efetivamente o motivo jurídico, a razão formal.
Mas, conforme já se adiantou, ocorre um fundo político que inspirava e conduzia à este recurso. A atitude de Sócrates frente aos juizes, terá induzido estes a uma sentença vingativa e que foi decidida por escassa maioria. Não fosse a atitude de Sócrates, a pena houvesse sido mais amena, talvez de 30 minas de prata.
Foi a pena de morte deferida por 30 dias, até que voltasse o navio que anualmente fazia a viagem à ilha de Delos, segundo um voto grego. Neste espaço de tempo, conforme o texto citado, ficou a entreter-se com os discípulos em colóquios sobre a alma e a preparar-se de acordo com sua doutrina de purificação, para libertar o espírito da matéria. Propuseram os discípulos a fuga, o que Sócrates rejeitou como contrário à lei.
§2. Fontes do pensamento socrático. 8310y0121.
122. O mais sábio de todos os homens nada escreveu Sócrates. Seu pensamento foi retransmitido pelos discípulos das escolas socráticas menores, mas sobretudo por Xenofonte (em Dizeres admiráveis de Sócrates), Platão (em sua trintena de Diálogos) e por Aristóteles (nas introduções históricas aos temas de que passava a tratar).
Sem haver escrito, Sócrates emitiu frases de homem sábio, e que se conservaram na memória popular. Depois passaram ao papel, de sorte a se haverem conservado no tempo. Xenofonte escreveu mesmo um livro entitulado Ditos memoráveis de Sócrates. Muitos dos dizeres se referem à vida humana, e atestam sobre o mesmo Sócrates.
123. Xenofonte (c. 430-355 a.C.) (em D. Laércio II, 48-59) foi o mais velho dos três citados como principais informantes sobre as doutrinas de Sócrates. Foi seu discípulo, ao mesmo tempo que companheiro na aventura militar, que a partir de 404 (a.C.) tentou influenciar a sucessão no reino persa.
Em Anábasis relatou Xenofonte a retirada dos 10 mil mercenários gregos, no recuo de Babilônia ao Mar Negro. Prosseguiu, com suas Helênicas, a obra histórica de Tucícides, autor de Guerra do Peloponeso; a obra é valiosa porque teve contato direto com os participantes do conflito entre Atenas e Esparta. O texto Ciropédia, com caráter de tratado de pedagogia, se refere à educação de Ciro.
Especialmente sobre Sócrates escreveu Xenofonte dois livros: `! B @ : < 0 : @ < , b : " J " , título que significa o que se mantém na memória. A versão latina consagrou o título Memorabilia Socratis dicta, ou seja Ditos memoráveis de Sócrates. O segundo livro leva o título de um objetivo claro, que era o de sua defesa `! B @ 8 @ ( \ " J , G T 6 D V J @ L H (= Apologia de Sócrates).
O que Xenofonte refere de Sócrates foi principalmente o lado episódico de sua vida, poucas vezes penetrando mais a fundo o seu lado filosófico.
124. Platão foi o que mais transmitiu do pensamento de Sócrates. Havendo usado o diálogo, em que Sócrates surge como interlocutor, este passou a ser o brilhante ator da filosofia posta em questão.
De outra parte, pretendeu Platão defender as mesmas doutrinas que seu mestre. Por isso, nem sempre deixou clara distinção entre o que é de Sócrates e o que já vai sendo um novo desenvolvimento pessoal do mesmo Platão.
Acontece então que os primeiros livros de Platão expressam com mais precisão as doutrinas de Sócrates; as novidades dos seguintes, ainda que venham pela boca de Sócrates, se devem atribuir mais a Platão, o que entretanto não é sugerido pelo texto.
125. Quanto a Aristóteles (344-322 a.C.), nascido já depois da morte de Sócrates (399 a.C.), transmitiu apenas informações próximas ao tempo deste. Ele o faz todavia com claras atribuições doutrinárias a Sócrates, com isto garantindo as diferenças com as inovações de Platão.
Finalmente Diógenes Laércio colheu em todos os três citados, - Xenofonte, Platão, Aristóteles, - e em outros mais.
126. Cabem a Sócrates as doutrinas referentes à:
- especificidade da inteligência (contra o sensismo sofista),
- substancialidade e espiritualidade da alma (contra o materialismo monista),
- preexistência e imortalidade da alma (orfismo herdado de Orfeu e Pitágoras),
- existência de Deus e reação ao antropomorfismo (contra a mitologia),
- moral natural (contra os sofistas).
Sendo embora tais doutrinas as de Sócrates, as defendeu também Platão, que por isso aliás era um discípulo do mesmo.
Cabem especificamente à Platão as doutrinas sobre a reminiscência (que não é impossível no orfismo), mas sobretudo as doutrinas das idéias reais arquétipas; este campo de idéias de Platão, ele as desenvolveu sob influência pitagórica.
A doutrinação sobre uma nova concepção política, se deve também às preocupações específicas de Platão. Neste particular se distinguem mais claramente os dois mestres.
Encaminhou-se novamente Platão ao estudo da natureza, juntamente com as preocupações humanas de Sócrates.
Aristóteles cuidou de informar sobre o que era de Sócrates e o que de Platão:
"Sócrates, cujas, preocupações se dirigiam às coisas morais e, de nenhum modo sobre a natureza em conjunto, procurou neste domínio o universal e fixou primeiro o pensamento sobre as definições. Platão aceitou seu ensinamento, mas sua primeira formação o levou a pensar que este universal devia existir em uma outra ordem que as coisas sensíveis"(Metaf. 987b).
"Para Sócrates, porém, os universais e as definições não são entes separados; os que vieram depois dele é que os separaram, chamando de idéias essa classe de entidades" (Metaf. 1078b 30) (vd 140).
Nestas informações está claro que tais doutrinas são posteriores e nós podemos imaginar que elas resultaram das influências dos pitagóricos sobre Platão, principalmente quando este os visitou depois na Itália.
127. As doutrinas de Sócrates também devem ser vistas em função às dos sofistas. Elas são análogas às dos sofistas no que se refere aos temas. Sócrates se ocupa, como eles, de assuntos humanos, situando-os com prioridade em relação às teorias sobre a natureza.
Os métodos dialéticos de Sócrates e sofistas também são similares, destacando-se até pela sua ironia em os conduzir.
Diverge, todavia, Sócrates no que se refere às soluções; enquanto os sofistas tendem para o probabilismo, relativismo e ceticismo, Sócrates é pela certeza em gnosiologia.
Os sofistas são pelo sensismo, materialismo (monista), contra a moral de direito natural. Inversamente, Sócrates é intelectualista, racionalista, espiritualista (dualista) e a favor de uma ética natural.
128. Importa algum cuidado nas apreciações de terceiros sobre Sócrates. Porque fosse um filósofo sui generis e complexo, foi julgado sob perspectivas diferentes.
Xenofonte, que viveu largo tempo com Sócrates, teve, de uma parte, condições, para com fidelidade transmitir o que de fato quis informar. De outra, a sua condição limitada de filósofo, não lhe terá dado recursos intelectuais para uma apreensão suficientemente profunda dos temas informados.
Acresce ainda que Xenofonte não visou toda a filosofia de Sócrates, mas apenas o lado moral de sua pregação, com vistas a defender sua imagem diante do público, e o que escreveu o fez ao menos cinco anos após a morte do amigo. Portanto, Xenofonte não apresenta a Sócrates em seu todo, o que poderá ter acentuado a sua posterior imagem moralista exclusiva e apenas a nível popular. A crítica deverá corrigir este desvio, situando-o como um filósofo mais vasto.
Sem inspiração filosófica maior, Xenofonte fixou aquela sabedoria revelada pelo mestre no seu cotidiano, donde deus livros Ditos admiráveis de Sócrates e Simpozio
Quanto a Platão, mais jovem, que contatara Sócrates apenas à partir de 407 a. C., foi um codificador mais capaz. Todavia já dependeu em parte do mesmo Xenofonte, como ainda de Ésquines, Euclides e Antístenes. Descreveu Platão a Sócrates seguro de si e irônico, frente a frente com os sofistas, insistindo contra eles na espiritualidade e agindo como um educador, censurado sempre na temática humana. A forma de diálogo dos escritos de Platão, como que, tornaram viva a imagem de Sócrates.
Quanto às informações de Aristóteles, apesar de ser já da geração seguinte, são de valor crítico mais apurado, havendo dito com precisão o pouco que informa.
Finalmente, Diógenes Laércio (X, 2, 18-47) colocado muitos séculos depois, tem a vantagem de haver coletado tudo o que ainda restava a respeito do passado referente a Sócrates. O seu texto de uma dezena de páginas representa como que um balanço.
129. É possível que a estatura de Sócrates seja mesmo em parte uma criação de Platão Ainda que as idéias dos diálogos platônicos venham em grande número de Sócrates, elas foram certamente desenvolvidas por Platão com mais ampla análise. Produziu um fenômeno inverso ao de Xenofonte, o qual como que diminuía seu conteúdo. Por isso, tais idéias, ainda que de Sócrates, contêm um desdobramento platônico adicional.
Por conseguinte Platão é autor não somente das novidades (como doutrina das idéias reais) e sim também do próprio desenvolvimento do ideário socrático. Até onde acontecem as novidades exclusivas de Platão e onde ainda promoveu o aprofundamento socrático, - são duas questões a responder, e que ficam sem a precisão necessária para o interesse da ciência histórica.
Quando se trata simplesmente das novidades platônicas somos ajudados com frequência por Aristóteles, porque este atribui certas doutrinas diretamente a Platão, inferindo-se que não são portanto de Sócrates. Outras vezes atribui doutrinas diretamente a Sócrates; então é de novo claro não pertencerem ao rol das novidades de Platão.
Seja o texto sobre as idéias reais arquétipas:
"Sócrates, cujas preocupações se dirijam às coisas morais e de nenhum modo sobre a natureza em conjunto, procurou neste domínio e fixou primeiro o pensamento sobre as definições.
Platão aceitou seu ensinamento, mas sua primeira formação o levou a pensar que este universal devia existir em uma outra ordem que as coisas sensíveis " (Metafísica 987b).
Páginas adiante, diz mais Aristóteles:
"Para Sócrates, porém, os universais e as definições não são entes separados; foram os platônicos que os separaram e eles deram o nome de idéias" (Metafísica 1078b).
130. O melhor testemunho contemporâneo. Não obstante toda a importância que se dê às informações de Aristóteles e Platão sobre Sócrates, o melhor testemunho contemporâneo é ainda Xenofonte. Não depende ele nem de Aristóteles nem de Platão. Mas o próprio Platão poderá em parte depender dele.
De Ésquines, outros discípulo de Sócrates, praticamente nada se conservou, mas em seu tempo terá sido um dos veículos que oralmente e por escrito contribuiu para a codificação do pensamento de Sócrates ligada por terceiros. Este testemunho oral também terá ocorrido por intermédio de Euclides e Antístenes das escolas socráticas menores, ainda que hoje não tenhamos mais os dados.
Alguns problemas restam de difícil solução, como o de saber qual gênero literário da obra de Xenofonte Os ditos memoráveis de Sócrates e ela for uma exposição artística de criação livre, seu valor não será o mesmo, que se for como se supõe uma exposição histórica e apologética. Certamente não é escrito apócrifo, como uns poucos suspeitaram.
A apologia em que Platão se ocupa do julgamento e morte de Sócrates não o representa tão sábio quanto deveria ser ao nível do oráculo de Delfos, pelo qual seria o mais sábio dentre os homens. Por isso, é necessário sempre considerar a Sócrates mais que um simples pregador de moral. Atrás desta moral existe também mais filosofia.
Discute-se também se o Simpósio de Xenofonte é anterior ou posterior ao de Platão, podendo mesmo ambos depender de um Simpósio anterior aos dois, talvez de Antistenes. Por algum tempo se duvidou da Apologia de Xenofonte; mas depois se voltou a considerá-la autêntica.
Há pois que ter muito cuidado com o manejamento das fontes documentárias que se referem a Sócrates. Porque ele mesmo nada deixou escrito, sua Imagem biográfica e ideológica jamais far-se-á conhecida hoje com precisão. Figuras significativas como Sócrates, tal como acontece com a dos fundadores de grandes religiões, correu o risco (e até a fortuna) de serem engrandecidas pelos seu admiradores.
Não faltam, pois, os prudentes que interpretam Sócrates como um equívoco da história da filosofia, não tendo tudo a importância que depois se lhe emprestou.
§3. Doutrinas de Sócrates. 8310y133.
134. Síntese didática. Os temas de Sócrates dizem respeito ao conhecimento, à alma, à divindade e à ética. Excluiu propositadamente o estudo sobre a natureza, para destacar o lado humanístico de sua preocupação.
No que se refere ao conhecimento, a doutrina socrática se ocupa do método, da ciência, da indução, da certeza gnosiológica (vd 8319y136).
Quanto à Deus a doutrina de Sócrates era firme, todavia não ingênua. Como se sabe, na condenação de Sócrates fora alegada sua doutrina contra os deuses (vd 8319y147). A doutrina sobre Deus constituem a ontologia de Sócrates, a qual contém pouco de ontologia, que lhe daria melhor fundamento.
No atinente à alma, a doutrina socrática é nitidamente dualista, - corpo e espírito, - como também será a seguir a de Platão, e como anteriormente era a do pitagorismo e orfismo. Tudo isto virá a favorecer a convicção sobre o inatismo das idéias e mesmo das idéias reais arquétipas; mas estas últimas já serão desenvolvimento sobretudo de Platão (vd 8319y160). A filosofia natural, que logicamente viria na base da psicologia, não foi praticamente tratada por Sócrates.
Finalmente, foi a doutrinação ética o grande destaque de Sócrates (vd 8319y175 ).
I – Doutrina socrática do conhecimento. 8310y135.
136. Ainda que buscando uma filosofia moral, as discussões de Sócrates foram ao mesmo tempo clareando questões meramente formais do conhecimento (lógica) e outras de validade do seu conteúdo (gnosiologia).
Isto tudo levou ao próprio conceito de ciência. É a ciência é um conhecimento do geral. Ou seja, é a explicação das coisas singulares, percebendo-as sob o prisma de uma idéia universal. Eis uma definição de ciência, que se atribui como sendo descoberta de Sócrates.
Com isto Sócrates teria também esclarecido o conceito de definição, que oferece a noção geral da coisa (Arist., Met. 897b).
Igualmente veio Sócrates a mostrar o que é uma indução, - um caminhar para o universal, a partir de dados singulares. Isto o fez sobretudo com assuntos morais.
Determina, por exemplo, a idéia de justiça, arrolando os elementos comuns em muitos casos particulares. Teria sido excelente se tivesse aplicado o método indutivo ao estudo da natureza. "Duas coisas podem ser atribuídas com justiça a Sócrates: os argumentos indutivos e a definição universal, ambos os quais se relacionam com o ponto de partida da ciência" (Arist., Metaf. 1078b 28).
137. O método socrático, como é denominado, consiste numa dialética, em que a discussão se desenvolve em dois tempos, - a ironia (, Æ D T < , \ " ) e a maiêutica (: " 4 , L J 4 6 ¬ J X P < 0 = arte de fazer parir).
A ironia socrática consiste em perguntar, fingindo desconhecer o assunto (= dúvida fictícia e metódica), com vistas a refutar a tese contrária e preparar a tese verdadeira.
Maiêutica foi o nome figurado que Sócrates deu ao método didático, por ele particularmente desenvolvido, e que conduz o interlocutor a descobrir paulatinamente o conhecimento sobre o objeto de discussão. No caso de Sócrates, que supunha haver idéias inatas, a maiêutica consistia, mais precisamente, em fazer recordar, despertando os conhecimentos virtualmente possuídos.
Como método, a dialética vinha sendo praticada pelos últimos pré-socráticos, como Zenão de Eléia e especialmente os sofistas. Sócrates imprime a ela uma peculiaridade própria, em vista de seu temperamento irônico e seu propósito de combater os sofistas. Além disto, a maiêutica era caracterizada pela sua concepção inatista, bem como pelo fato de havê-la denominado em função à profissão de sua mãe, que era parteira.
138. O conceito, o juízo e o raciocínio, considerados do ponto de vista meramente formal, são temas da lógica, de que alguns aspectos foram desenvolvidos por Sócrates. Mas não é questão clara, até onde levou o assunto, que só depois terá maior desenvolvimento com Aristóteles. Este, ao tratar da lógica, mencionou a Sócrates, reconhecendo seus méritos de inventor da indução.
Um conceito implica sempre em abstração. Abstraídos os indivíduos, resta a essência dos mesmos; então a essência passa a ser o conteúdo de um conceito universal obtido por indução a partir dos indivíduos.
Os conceitos não expressam apenas a essência da coisa. Na essência todavia está aquilo que define a referida coisa individual. Sócrates procurava a essência, portanto a definição das coisas, acima de sua individualidade. A definição a procurava principalmente para as coisas humanas ou morais.
Platão acrescentará que a essência universal das coisas tem um réplica transcendente que lhe serve de modelo arquétipo. Esta é a doutrina das idéias reais, inspirada nos números reais já anteriormente preconizada pelos pitagóricos. A doutrina das idéias reais não é de Sócrates, ainda que Platão a tenha posto em sua boca, nos diálogos posteriores. Sócrates se manteve apenas na idéia universal das essências, descoberta sob as individualidades concretas, as quais eram simplesmente colhidas por abstração.
139. Um conceito universal poderá ser obtido por simples abstração. Também poderá ser o resultado de um raciocínio indutivo. Sócrates opera em ambas as modalidades de operação.
Sobre os procedimentos de Sócrates na doutrina sobre a indução e a definição se referiu longamente Aristóteles, destacando sua prioridade neste campo:
"Chegamos agora à questão das idéias. Devemos de começo examinar a doutrina mesma das idéias, sem tocar na natureza dos números. Nós a tomaremos tal como a conceberam primitivamente aqueles que por primeiro falaram da existência das idéias.
A doutrina das idéias foi, junto à seus fundadores, a consequência dos argumentos de Heraclito sobre a verdade das coisas, argumentos que os persuadiram, e segundo os quais todas as coisas sensíveis estão no fluxo perpétuo das coisas, de sorte que se há ciência e conhecimento de qualquer coisa, devem existir certas outras realidades além das coisas sensíveis, realidades estáveis, porque não há ciência daquilo que se encontra em perpétuo movimento.
Sócrates se aplicou ao estudo das virtudes morais, e foi a este respeito o primeiro a procurar definir universalmente.
Entre os físicos, com efeito, Demócrito não fez mais que abordar por alto este método, não definindo senão o calor e o frio. Antes dele, os Pitagóricos o ensaiaram a propósito de um pequeno número de coisas cujas noções prenderam aos números, expressando por exemplo a essência, e era lógico, porque procurava fazer silogismos, e o princípio do silogismo é a essência. A dialética não se encontrava neste tempo suficientemente adiantada para levar seu exame sobre os contrários independentemente da essência, e para determinar se era a mesma essência que trata dos contrários.
Há duas descobertas, pois, que a justo título, podem-se atribuir a Sócrates: o discurso indutivo e a definição geral, que estão ambas no ponto de partida da ciência.
Sócrates contudo não concordou com uma existência separada, nem dos universais, nem das definições. Os filósofos que vêm a seguir os separaram" (Arist., Metafísica, 1078b 12-32).
No contexto, discursos indutivos (¦ B " 6 J 4 6 @ Â 8 ` ( @ 4 ) não são induções científicas propriamente ditas, mas os processos que conduzem à essência pela via da abstração (vd Met., 1025a 6-13).
140. O que importava ainda era determinar claramente o princípio em que se fundamenta a indução.
Os antigos repõem tudo na essência que estaria sob as individualidades. Semelhante é a afirmativa de que a indução se baseia no princípio da unidade da natureza.
Contrários ao valor da indução, os empiristas e nominalistas, sobretudo modernos, a reduzem à generalização provável.
Deste aspecto da questão, quer lógico, quer gnosiológico, não tratou mais demoradamente Sócrates; conhecia o processo, nele acreditava e o aproveitava. Platão levará a questão em frente, afirmando que as essências universais tinham um correspondente arquétipo real, que denominou idéias reais. Ainda que o tenha dito pela boca de Sócrates, este efetivamente não chegou a esta doutrina, como expressamente informou Aristóteles (Metafísica, 1078b 12-32).
141. Com a indução e a dedução desenvolvidas por Sócrates, deu à lógica mais um passo. Se em Zenão de Elea e Protágoras de Ábdera ocorrem os primeiros sinais de um argumentação ordenada, com dilemas claramente apresentados, em Sócrates a argumentação manifesta a primeira vez sinais que distinguem entre dedução e indução.
Até aqui o argumento procedia de fatos isolados e sem organização. Sócrates passa a enumerar fatos semelhantes, para deles inferir uma natureza, ou uma propriedade constante que lhes seja comum e lhes sirva de lei.
Para definir, por exemplo, a justiça usou Sócrates a indução, quando sob a coluna A (primeira letra de Adikia = injustiça) arrolava os fatos que indicavam uma injustiça, mentira, engano, servidão. Sob a coluna D (primeira letra de Diké = justiça) escrevia os atos que podiam significar justiça, como o general que vence os inimigos, ou o pai que engana a criança para levá-la a tomar remédios de gosto desagradável.
142. Aplicou Sócrates a indução aos assuntos morais ou humanos.
O campo mais fecundo e até mesmo mais fácil para a indução é o dos dados físicos em que se especializou a ciência moderna. Houvessem já os antigos cuidado da indução no estudo da física e lhe desenvolvido as técnicas sobretudo a medição matemática, muito mais cedo teria alcançado os progressos da civilização.
Interessa à história da lógica apurar até que ponto iam os conhecimento de Sócrates sobre o processo indutivo. Ele arrola fatos e os diferencia entre si, para descobrir um elemento comum; mas não se vê em Sócrates um cuidado reflexo no sentido de examinar as normas meramente formais que regem o processo em si mesmo. Conhecia a existência do processo e o usava, sem outro exame.
A lógica de Aristóteles tratará de caracterizar melhor o processo indutivo, separando-o do dedutivo (o silogismo). Aristóteles estudará sobretudo o dedutivo, ficando para os modernos, a partir de Locke e Stuart Mill, dar desenvolvimento amplo aos métodos indutivos.
Não faltou quem tentasse negar mesmo que Sócrates sequer fosse o inventor da indução, apesar da afirmação aristotélica. Nem Sócrates e Platão teriam chegado a distinguir entre dedução e indução. Embora pareça um exagero, a afirmação vem mostrar como são precários os informes sobre os primeiros descobrimentos sobre a indução.
Digamos também que não se deve confundir a maiêutica (vd 137) simplesmente com a indução. A maiêutica usava tanto a indução, como a dedução. Ela consistia em provar positivamente a tese, não importava se pela indução, ou se pela dedução, ou mesmo se por simples reminiscência.
Efetivamente, para definir a justiça, usou Sócrates da indução, e para provar a obrigação do amor aos pais, da dedução.
Com referência a dedução, usou-a também Sócrates, quando, por exemplo, parte dum princípio geral, para provar a gratidão dos filhos para com os pais. Dizia:
É ingratidão não reconhecer benefícios recebidos sendo a injustiça tanto mais clamorosa quanto maiores tenham sido os benefícios prestados (princípio geral).
Ora, prossegue no argumento, os pais proporcionam grandes benefícios aos seus filhos (e enumera como prova da premissa).
Logo, concluía, deve-se ter gratidão para com os pais.
É relevante anotar que Sócrates aduz estes argumentos, falando diretamente a Lâmpocles, seu filho, cujas dificuldades eram notórias com referência à mãe Xantipa, de difícil temperamento.
144. A gnosiologia também está presente em Sócrates, quando reage ao ceticismo e ao relativismo dos sofistas, afirmando convictamente a segurança da atividade intelectiva em obter certeza.
Já não se trata de uma questão meramente formal da lógica, a qual cuida apenas do fluxo operacional do pensamento. A nova questão indaga pela validade do conteúdo oferecido. Contra os sofistas, defende pois Sócrates a validade do que se conhece.
A defesa da validade do conhecimento não é feita por Sócrates como simples afirmação dogmática ingênua. Pratica o pensamento crítico, atento às diferentes alternativas. E prossegue pela via da dúvida metódica.
Ainda que metodologicamente aparente ser um destruidor, arrasando a tese contrária pela ironia, Sócrates de fato recua a pesquisa ao "sei que nada sei", para depois restabelecer, com todas as nuances daquela ironia, uma por uma, as verdades. Isto o faz sistematicamente, operando com a didática da maiêutica e estabelecendo as certezas aceitáveis. Neste sentido, o socrático "sei que nada sei" é o exercício da duvida metódica, de acordo com a expressão que mais tarde será consagrada por Descartes, autor do Discurso do método, datado de 1637.
145. Outras questões gnosiológicas mais decide Sócrates.
No curso das discussões gnosiológicas Sócrates decide também sobre o sensismo e intelectualismo. Agora, de novo, contraria a tese sofista do sensismo, para instalar a diferença específica entre sensação e pensamento.
A questão dos princípios, ou axiomas, é muito grave em filosofia e já havia sido introduzida pelos eleatas. Não se tem todavia informes sobre o que Sócrates tenha dito sobre esta questão.
Talvez tenha simplesmente admitido o princípio de contradição, sem maior exame sobre a sua validade.
E assim também o finalismo da natureza poderá ter sido apenas uma de suas crenças sem maior exame. Por isso a sua moral será teleológica. Também por isso não tem restrições ao argumento da existência de Deus, como causa da ordem do mundo.
Concluindo, ficou constatado que Sócrates, depois de se ocupar com a lógica, também ingressou no campo agreste da gnosiologia. O assunto já houvera preocupado aos eleatas Parmênides e Górgias, no Ocidente, e a Heráclito, na Jônia, havendo agora dado um novo passo com os sofistas e Sócrates. A questão foi sempre a maior preocupação da filosofia, porquanto a metafísica tem por missão primeira provar seu próprio objeto, iniciando portanto como metafísica defensiva.
II – Doutrina socrática sobre Deus. 8310y147.
148. Deus é admitido pela metafísica de Sócrates, ainda que tenha posto em dúvida aos deuses. Enquanto a tendência dos filósofos pré-socráticos fora claramente monista, porquanto consideravam Deus o próprio mundo, passou Sócrates ao ponto de vista do dualismo, em que Deus e o mundo são distintos, embora não tão grosseiramente como imaginava a mitologia popular.
Mas não foi sem reservas que Sócrates abordava o assunto, pois nem Deus e nem a natureza exterior diziam respeito à pessoa humana, desta cuidando ele em primeiro lugar.
A indiferença de Sócrates tornou-se explicita com referência a mitologia como se infere em um diálogo platônico, em que a questão foi posta:
"Fedro - dizei-me uma coisa, caro Sócrates; não afirma o povo que de um destes lugares, à margem do ilisso, Bóreas raptou Crítia? Ou foi na colina de Ares? A lenda, com efeito admite que foi no Ares e não aqui que Crítia foi raptada.
Sócrates: - com efeito.
Fedro: - Quem sabe se não foi aqui onde estamos? É bonito esse trecho do regato; a água aqui é pura e transparente; este lugar bem se presta aos folguedos das jovens.
Sócrates: Não foi aqui, mas cerca de três ou quatro estádios mais abaixo, onde atravessamos o regato em direção ao templo de Agra. Há naquele ponto um altar a Bóreas.
Fedro - Não prestei muita atenção. Mas por Zeus, caro Sócrates, dizei-me uma coisa: Acreditas que esse mito corresponde à verdade?
Sócrates [longamente]: - Se eu fosse, como os homens doutos, um incrédulo não seria um homem extravagante, um desses sujeitos que procuram os atalhos ainda não batidos.
Se fosse da opinião deles diria, fazendo deduções muito doutas, o seguinte: o sopro de Bórreas arremessou-a das rochas que existem perto daqui, quando ela brincava com Farmacéia; em consequência disso Critia morreu, e o povo contou que ela fora raptada por Bóreas.
Ou talvez isso se tenha passado no Areópago, pois também se diz que ela ali foi raptada, e não daqui.
Eu, caro Fedro, acho tudo isso muito bonito, mas é trabalho para um homem de grande inteligência, a quem o esforço não intimida, e aí não encontramos a felicidade.
Além disso, será necessário interpretar a seguir a figura dos Hipocentauros, a da Quimera, e finalmente uma multidão de Górgonas e de Pégasos, um número pasmoso de outras criaturas inexplicáveis e lendárias.
Se por incredulidade, se procura dar verossimilhança a esses seres, usando para isso de um curiosa e grosseira sabedoria, perde-se nisso o tempo e não podemos apreciar a vida como convém.
O meu lazer, não destino a essas explicações e eis aí a razão da minha atitude: Ainda não cheguei a ser capaz, como recomenda a inscrição délfica, de conhecer a mim mesmo.
Parece-me ridículo, pois não possuindo eu ainda esse conhecimento, que me ponha a examinar coisas que não me dizem respeito. Não me interessam essas fábulas e conformo-me nesse sentido, com a tradição. Não são as fábulas que investigo; é a mim mesmo.
Talvez eu seja um animal muito mais extravagante e cheio de orgulho que Tífon (que vomita fogo); ou porventura um animal mais pacífico e menos complicado, cuja natureza talvez participa de um misterioso e divino destino, mas que não se enche com os fumos do orgulho" (Fedro 229-230 c).
149. Argumento teleológico. Na prova da existência de Deus, este é avocado como autor da ordem universal. É portanto um argumento teleológico (referente ao fim, ao acabamento).
Talvez não o mais significativo dos argumentos da ontologia sobre Deus, é todavia o que mais cedo surgiu e se desenvolveu na história da filosofia, e seus sinais já se encontram no Nous de Anaxágoras (vd), para surgir bem claro em Sócrates.
Muitos serão os argumentos tentados no futuro sobre a existência de Deus. Mas, não se observa ainda em Sócrates um exame de todos os caminhos, ou vias. Não adotou a priori (como Santo Anselmo, na idade Média, e Descartes depois).
Dentre as provas A posteriori, - se nos guiarmos pela ordem estabelecida por Tomás de Aquino (Suma Teologica I, 2 a 5), que as ordenou em cinco vias (a primeira pelo movimento, a segunda pela causa eficiente, a terceira pela contingência, a quarta pelos graus de perfeição, a quinta pelo governo das coisas), - desenvolveu Sócrates particularmente a quinta via, ou seja o argumento teleológico, e muito rudimentarmente a segunda via, ou seja a prova pela causa eficiente, ao sugerir a existência de Deus como autor da inteligência humana e da lei natural.
150. A exposição do argumento teleológico de Sócrates se encontram principalmente nas referências deixadas por Xenofonte e também num diálogo de Platão.
Formulado abreviadamente o argumento teleológico teria a forma seguinte:
- Há uma ordem admirável no homem e no universo, onde nada se movimenta ao azar;
- ora somente uma inteligência soberana pode explicar esta ordem;
- logo todo o cosmos exige uma inteligência soberana, um Demiurgo que o disponha nesta ordem admirável.
No diálogo platônico, pergunta Sócrates e Aristodemo:
"Não lhe parece que aquele que fez os homens desde o início lhes deu órgãos a fim de que lhes sejam úteis: os olhos para ver os objetos visíveis; as orelhas para ouvir os sons?
Para que nos serviriam os odores, se não tivéssemos narinas?
Que idéia teríamos do que é doce, do que é amargo, do que satisfaz agradavelmente ao paladar, se a língua não estivesse ali para decidir?
Não é acaso uma maravilha da providência, que nossos olhos, órgãos delicados, estejam munidos de pálpebras que se abrem como portas quando deles precisamos e se fecham durante o sono?
Que estas pálpebras estejam munidas de cílios, que a maneira de crivos, os defendem contra o furor dos ventos? Que os sobrecílios se colocam à maneira de telhado por sobre os olhos para impedir que o suor a escorrer da frente os estorve?
Ou que os ouvidos recebam todos os sons, sem se encher jamais?
Que os dentes dianteiros de todos os animais sejam cortantes e os molares próprios para triturar os alimentos recebidos dos incisivos?
Que direi da boca, que destinada a receber o que excita o apetite do animal, é colocada junto dos olhos e das narinas?
E como as dejeções excitam a aversão, não têm elas afastadas os seus canais, de maneira a se encontrarem distantes dos órgãos mais delicados?
Duvidais ainda que estas obras feitas com tanta ordem sejam produzidas ao azar, ou por uma inteligência?
Percebo bem [concorda Aristodemo com Sócrates], que as considerando sob este ponto de vista, são reconhecidamente obra dum sábio artista, animado por um terno amor por suas criaturas" (Xenofonte, Ditos Memoráveis de Sócrates, I, 37).
151. As limitações do argumento teleológico se encontram em ambas as premissas e disto não se apercebeu inteiramente Sócrates.
O argumento estabelece o fato da ordem . Este fato deve ser adequadamente apresentado, o que ao tempo de Sócrates era difícil de mostrar com linguagem científica.
O argumento deveria analisar mais subtilmente os fatos admiráveis da natureza. Não levou em conta Sócrates o quadro geral das leis naturais, como ainda não o da seleção das espécies. Nisto tudo deve haver ainda um equacionamento das catástrofes e mortes. Neste quadro não aparece de primeiro intuito que tudo se constata como bem feito.
Depende o argumento teleológico ainda da validade gnosiológica do princípio da finalidade.
Alegou simplesmente que as forças mecânicas por si só não explicam, o finalismo imanente, que, segundo ele, ocorre no mundo. Adverte que o mundo é bem ordenado, estando pois a exigir uma explicação externa.
Todavia, a prova, - como Sócrates a estruturou, - já era um silogismo bem montado. Ainda que as premissas não fossem suficientemente provadas, - conduziam à existência de Deus e a um conceito elevado do mesmo.
152. A criação da matéria não é proposta por Sócrates em seu argumento teleológico. A ação divina consiste em aperfeiçoar as formas ordenadoras da matéria, estabelecendo uma ordem superior, com a atenção nos arquétipos.
Também Platão continuará a ter na matéria algo eterno, atribuindo a Deus (Demiurgo) apenas a função de ordená-la.
Este dualismo é portanto irredutível, porque um dos elementos não cria ao outro, atuando apenas exteriormente.
Resta aqui algo do eleaticismo, segundo o qual ser sempre existe, substancialmente nada se cria, nada morre.
153. Também o argumento da existência de Deus baseado na causa eficiente começou a esboçar-se nas ponderações de Sócrates. Estaria em Deus a explicação da origem da inteligência humana.
Considera Sócrates sem dificuldade que o corpo humano se origina do grande corpo do universo, pois se apresentam ambos materiais, um e outro sujeitos ao mesmo mecanicismo.
Não lhe parece explicável que a inteligência possa brotar de um ser sem inteligência. E assim a inteligência humana seria criada, ou pelo menos emanaria de uma outra inteligência superior, - Deus.
Encontra-se ali um primeiro esboço do argumento baseado na causa eficiente (2-a. via de Tomás de Aquino).
O reparo que se poderia fazer ao argumento é o de que ele em princípio esquece de levantar a hipótese de que também a matéria seria viva, emergindo somente depois a manifestação desta vida. Somente depois de excluir a hipótese de que a matéria seja desde sempre viva se pode apelar a uma outra causa da inteligência humana.
154. A natureza de Deus para Sócrates é antes de tudo espiritual, por causa de sua condição de ser superior.
Deus é também um ser único, providente e venerável.
O atributo da unidade de Deus é deduzido da unidade do mesmo universo; provado que esta unidade exige um Deus, e, ocorrendo que, com um só Deus, tudo estaria explicado, não passou Sócrates a demonstrar a existência de outros deuses mais.
Entretanto, sem deixar de conceber o senhor do mundo em termos absolutos, não deixou de criar uma formulação elevada para o politeísmo antigo.
Embora fugisse de tratar o assunto, como refere Platão (Fedro 229 e) reconhecia uma multidão de outros deuses, mas concebidos como entidades secundárias e servidoras do Deus único. Aliás esta é a crença dos que admitem a existência de anjos, ninfas, duendes e almas dos mortos a vaguearem no espaço. Admitia ainda a possibilidade dos mesmos entrarem em contato com os homens. Justificava, pois, os dizeres dos oráculos.
155. O demônio de Sócrates. Afirmou mesmo que pessoalmente era influenciado por um espírito estranho, que denominava demônio (* " \ : T < ), cuja ação lhe era benéfica, inspirando-o a praticar o bem e particularmente inspirando-o nos ensinamentos. Eis a passagem platônica que refere o fato.
"Sócrates: Oh! Tu és divino com os teus discursos, caro Fedro! És verdadeiramente admirável! Parece-me que agora me provocaste a fazer um segundo discurso.
Fedro: O que dizes está longe de me incomodar. Mas como sucedeu isto?
Sócrates: - Caro amigo! Quando quis atravessar o regato, despertou em mim o demônio e manifestou-se o sinal costumeiro.
Ele sempre me impede de fazer o que desejo. Pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá de dentro e não me permitia ir embora antes de oferecer aos deuses uma expiação, como se eu houvesse cometido alguma impiedade.
Sou adivinho, mas não muito hábil; sou como os que não sabem ler e escrever: só faço adivinhações para mim mesmo.
Agora vejo com clareza o meu pecado. Meu amigo! A alma tem o dom de profetizar. Já enquanto fazia o discurso, senti certa perturbação. Para me exprimir como Íbico: tive medo de ganhar honra aos olhos dos homens cometendo um pecado contra os deuses. Mas agora percebo qual é a minha culpa" (Fedro, 242 b).
Mas Sócrates não crê na divindade de coisas que obviamente se apresentam como simples objetos, notadamente não crê que o sol e a lua sejam deuses; assim o afirma na defesa contra as acusações de impiedade que o levaram à morte.
Entretanto, muito singularmente diz-se de Sócrates, que fez uma prece a Hélio (Deus Sol) ao tempo que participara da expedição contra Potidea (Banquete, 220).
156. Ainda outros atributos de Deus são determinados por Sócrates.
Dotado de inteligência, Deus é invisível aos sentidos humanos. Tem a sua vida própria num plano todo diverso e impenetrável.
Deus ainda é imenso:
"Está em toda parte e estende cuidados a todas as partes do universo" (Xenofonte, Ditos Memoráveis, I, 8).
Deus é providente, no sentido de compor bem todas as coisas, de modo a nada faltar às necessidades do conjunto, e todas serem feitas do modo mais apto e adequado.
Supõe a providência o finalismo nas coisas, que Sócrates descreveu amplamente, em seu argumento teleológico da existência de Deus (vd 149). A providência é como que um finalismo detalhado, a atender circunstâncias especiais.
Sócrates por fim declara a Deus venerável e merecedor dos reconhecimento de todos homens. Diz belamente:
"Reconheci qual é a grandeza do ser Supremo, que vê tudo num só olhar, que ouve tudo, que está em toda a parte, que leva tudo num só olhar, que ouve tudo, que está em toda parte, que leva num só tempo seus cuidados a todas as partes do universo" (Xenofonte, Ditos Memoráveis, I 38).
Eis uma oração de Sócrates, encontrada no fim do diálogo de Platão, Fedro:
"Divino Pan, os deuses outros destas paragens, dai-me a beleza da alma, a beleza interior e fazei com que o meu exterior se harmonize com essa beleza espiritual. Que o sábio me pareça sempre rico, que eu tenha tanta riqueza quanto um homem sensato possa suportar e empregar.
Não chegou Sócrates a cogitar da idéia de um Deus Criador; o seu Deus era apenas um Demiurgo, um organizador providente do mundo (vd 152).
III – Doutrina socrática sobre a alma. 8310y160.
161. A psicologia de Sócrates desenvolveu consideravelmente os conceitos sobre a pessoa humana, em que não faltam os temas essenciais, como especificidade da alma, espiritualidade e imortalidade.
Prosseguiu, determinando também as qualidades peculiares do espírito. Suas diversas faculdades são hierarquizadas, com distinção entre sentidos e inteligência, além de uma vontade dotada de liberdade. Esta, portanto, seria capaz de exercer um comportamento ético.
As noções de psicologia de Sócrates encontram-se particularmente em dois diálogos de Platão: no Fedon, denominado o Diálogo sobre a alma, em que é descrito Sócrates aguardando a hora de pôr do sol para beber a cicuta fatal, e no Fedro, ou Diálogo sobre do belo, em que se introduz a teoria platônica do conhecimento superior como reminiscência.
162. Especificidade da alma. Distinguiu Sócrates entre corpo material e alma, conforme o dualismo, praticado nos termos do orfismo e pitagorismo, ao menos na linguagem de Platão.
Para Sócrates a alma se apresenta como um substância específica imaterial (= espiritual), não composta (= simples), essencialmente distinta do corpo material.
Como provou esta especificidade espiritual? Tentou fazê-lo através das propriedades, alegando ser ela simples, dotada de movimento próprio e de conhecimento.
Na base destas propriedades seria a alma um ser específico. Importa avaliar estas alegações; todavia, do ponto de vista histórico, anotá-las, eis a principal função agora.
163. A simplicidade da alma, como prova de sua especificidade. Há coisas que se dividem, que são os corpos; as que não se dividem, que são as almas.
Quando Sócrates propõe a especificidade da alma a partir da simplicidade, não se adverte que, ao se dividir um corpo em partes, estas partes poderão por sua vez não mais se dividir e serem consideradas simples, embora se possa continuar a redividir o concreto por meio da abstração.
Da simplicidade da alma, concluiu Sócrates para a sua imaterialidade. Ocupa-se pois em considerações sobre a simplicidade, porque a partir desta propriedade encaminha a conclusão, conforme se aprecia em longo texto do Fedon de Platão:
- "Quais são (perguntou Sócrates) as coisas que são susceptíveis de decomposição? A propósito de que espécie de coisas devemos temer esse estado, e para que espécie de seres isso não acontece? Depois disso teremos ainda de examinar qual dos dois é o caso da alma, para finalmente, conforme o resultado que obtivermos, haurir daí confiança ou temor com respeito à nossa alma.
- É verdade (responde o outro interlocutor, Cebes).
- Não é, pois, às coisas compostas ou àquelas cuja natureza é composta, que cabe corresponder precisamente a composição? Mas, se acontece haver alguma coisa não-composta, não é só a ela que convém, mais do que a qualquer outra coisa, o escapar a esse estado de decomposição.
- Sim, disse Cebes, - é o que penso, assim deve ser.
- Dizei-me então: Os seres que sempre se conservam imutáveis e sempre se comportam do mesmo modo, não é altamente verossímil, que seriam esses precisamente os seres que não se decompõem? Ao contrário, o que jamais é o mesmo, o que ora se comporta de um modo, ora de outro, é ou não é isso, o que chamamos composto?
- Segundo penso, é.
- Passemos, agora àquilo para onde nos havia encaminhado a argumentação precedente! Essa essência de cuja existência falamos em nossas interrogações e em nossas respostas, diz-se: comporta-se ela sempre do mesmo modo, mantém a sua identidade, ou ora se apresenta de um modo, ora de outro? Pode-se admitir que o igual, o belo, que cada realizador em si - o ser - seja suscetível de uma mudança qualquer? Ou acaso cada uma dessas realidades verdadeiras, cuja forma é uma em si e por si, não se comporta sempre do mesmo modo em sua imutabilidade, sem admitir jamais, em nenhuma parte e em coisa alguma, a menor alteração?
- É necessário - disse Cebes - que todas conservem do mesmo modo a sua identidade, Sócrates!
- E doutra parte, que dizer dos múltiplos, como homens, cavalos, vestimentas, ou qualquer outros do mesmo gênero, e que são iguais ou belos - são sempre os mesmos aspectos às essências pelo fato de nunca estarem no mesmo estado nem em relação a si nem em relação aos outros?
- E dessa maneira - atalhou Cebes - eles nunca se comportam da mesma forma.
- Assim pois a uns podes tocar, ver ou perceber por intermédio dos sentidos; mas quanto aos outros, os seres que conservam sua identidade, não existe para ti nenhum outro meio de captá-los senão o pensamento refletido, pois que os seres desse gênero são invisíveis e subtraídos à visão.
- Nada mais certo!
- Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: Uma visível, outra invisível.
- Admitamos.
- Admitamos, ainda que os invisíveis conservem sempre sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
- Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos - tornou Sócrates. Não é verdade que nós somos constituídos de duas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é a alma? Coisa visível, ou coisa invisível? Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da natureza humana.
- Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente, Sócrates" (Fedon, 78 b- 79 a, trad. J. Paleikat).
164. Como movimento próprio, a alma é uma questão tratada desde o início pelos pré-socráticos. Certamente a alma tem atividades psíquicas imanentes, como o conhecer e o querer.
Mas, entende-la como causa do movimento próprio gerador de movimento corporal é o grande equívoco. Tales de Mileto, primeiro filósofo, supôs que no ímã ocorresse alma, e que esta explicaria a capacidade de atração, provocando o movimento. Heráclito identificou na mobilidade do fogo a alma.
Entretanto, importa admitir que a matéria também pode estar dotada de energias, não estando reduzida apenas a ser um espaço. Assim não fosse, o mundo não teria movimento antes que a vida houvesse surgido, e desapareceria o movimento se todos os seres vivos se afastassem, ou se desaparecem.
Com Sócrates a alma continua sendo uma natureza causadora do movimento, por um poder não recebido de fora. No Fedro, diálogo platônico sobre a alma, a afirmação colocada na boca de Sócrates é precisa:
"Cada corpo movido de fora é inanimado. O corpo movido de dentro é animado, pois que o movimento é a natureza da alma" (Fedon 245 e).
Mas do movimento a partir de dentro foi excluída a causa corpórea muito precipitadamente. Assim foi que ao movimento a partir de dentro se deu uma outra espécie de causa, - a alma.
O argumento de Sócrates com base no movimento próprio, o qual somente teria a alma, apresenta dificuldades. No contexto dualístico em que se situou, supõe um conhecimento suficiente da matéria a fim de poder excluí-la de ser ela mesma dotada de energias físico-químicas. Ora, este conhecimento os antigos não conseguiram ter. O movimento do ser vivo está em junção com a atividade físico-química. Sobre isto praticamente tudo ignorava a ciência do tempo de Sócrates. Além disto, não tinham os antigos, como ainda não o têm os modernos, como eliminar a possibilidade do monismo, em virtude do qual matéria e vida poderiam ser faces da mesma substância.
De outra parte, para, num sistema dualista, atribuir apenas à alma a capacidade geradora de movimento, importava também conhecer suficientemente os fenômenos psíquicos, o que mais uma vez não acontecia na antiguidade.
Entre causa e efeito se requer a proporcionalidade, e não se consegue imaginar que o psíquico, dualisticamente separado do corpo, possa agir sobre o que não é psíquico. Claro, que esta dificuldade desaparece na hipótese reducionista do monismo.
Não obstante, o que o dualismo antigo propôs, tem pelo menos validade de hipótese alternativa a examinar.
165. A tese da imortalidade da alma se funda em um argumento externo, qual é o da alegada metempsicose e reminiscência, e em argumentos, revestidos de feitio novo, baseados particularmente sobre a natureza mesma da alma.
As provas baseadas na metempsicose e reminiscência, retomadas por Sócrates, podem ser contestadas pela alegação de serem fatos mal observados e mal-interpretados.
166. Diz Sócrates alegando a metempsicose:
"É uma crença muito antiga que as almas, ao deixarem este mundo, vão aos infernos, e que dali voltam ao mundo e à vida depois de terem passado pela morte.
Se for assim, e os homens depois da morte retornam à vida, se deduz dali necessariamente que durante este intervalo estão as almas no inferno, pois que não retornariam ao mundo se nele não estivessem. E isto será uma prova suficiente de que existem, pois que ainda vemos que os vivos nascem dos mortos, porque se não fosse assim necessitaríamos de procurar outras provas" (Fedon 70 c-d).
Prossegue então Sócrates a confirmar a metempsicose, fazendo ver como um dos contrários sempre costuma nascer do outro, como a coisa que aumenta tem necessidade que antes fora menor para adquirir depois o aumento.
Não examinou Sócrates a hipótese alternativa, de que a vida pudesse ser criada; por isso ainda achava, que se da morte não renascesse a vida, mas só a vida fosse para a morte, chegaria o dia em que já não existira mais a vida.
"Se tudo o que houvesse tido vida morresse e estando morto permanecesse neste estado sem reviver, não chegaria necessariamente o caso de que todas as coisas teriam um fim e que nada haveria que vivesse? Se dos coisas mortas não nascem os vivos e estas morrem por sua vez, não seria absolutamente inevitável que por fim todas as coisas ficariam absorvidas pela morte?
É certo, pois, que há uma volta à vida, que os vivos nascem dos mortos , que as almas dos mortos, existem e que as almas dos justos são melhores e as dos maus piores" (Fedon, 72 c).
Esta prova pressupõe que não haja criação de almas, e que as mesmas almas vão e voltam. A hipótese, ainda que dualista, não se opõe ao monismo, que faz a vida pertencer ao mesmo elementos da natureza, como pensavam muitos pré-socráticos, ao estabelecerem que nada morre e nada nasce.
167. A Reminiscência, admitida por Sócrates e pela crença popular em geral, foi alegada como prova da imortalidade, porque ela é interpretada como sinal de uma vida anterior. Esta prova se reduz praticamente à da metempsicose.
Lê-se no Fedon, no resumo inicial de um longa discussão entre Cebes e Sócrates:
"O que dizes Sócrates, o interrompeu Cebes, é além do mais uma dedução necessária de um outro princípio que com frequência tenho ouvido em tuas considerações, que a nossa ciência não é mais do que uma reminiscência.
Se este princípio for exato, é absolutamente indispensável que tenhamos aprendido em outro tempo as coisas que nos recordamos neste, o que seria impossível se nossa alma não existisse antes de se revestir de forma humana. É uma nova prova de imortalidade da nossa alma" (Fedon, 72 e).
168. Mais valor apresentam as provas da imortalidade da alma, baseadas na sua natureza. A alma, no caso de ser imortal, somente poderia deixar sua própria existência ou em virtude de sua mesma natureza (se fosse corruptível) ou em virtude de uma causa eficiente da qual dependesse e que pudesse aniquilar esta sua natureza.
Do estudo exato da natureza da alma é que, portanto, depende dizer-se que ela se pode decompor ou ser aniquilada.
Cabe a Sócrates, pelos menos ao Sócrates dos Diálogos platônicos o mérito de ter desenvolvido este gênero de prova com base na natureza da alma.
Subdividem-se em vários: incorruptibilidade do que é simples ou espiritual; imortalidade daquilo que se move a si mesmo; impossibilidade de um aniquilamento por efeito de uma causa exterior.
169. Imortal, porque incorruptível. Num primeiro argumento da imortalidade com base em sua natureza, alegou Sócrates, que, por ser espiritualidade e simples, em tal estado não pode corromper-se. Em sendo incorruptível, decorre ser imortal. Não se pode desfazer, nem mesmo após a morte do corpo.
Efetivamente, a simplicidade tem por efeito formal excluir a corrupção, pois que a corrupção supõe a composição de partes.
170. Insiste ainda na imortalidade da alma em virtude de sua superioridade sobre o corpo, marcada pela atividade vivificadora, hegemonia do querer e maior agilidade de pensar quando afastada da matéria entorpecedora; mas esta insistência cabe apenas enquanto dissertação sobre a razão geral da espiritualidade, ou simplicidade, de onde deriva tal superioridade.
Eis as considerações de Sócrates:
"...quando a alma e o corpo estão juntos, a natureza manda a um obedecer e ser escravo e a outro que impede e mande. Pois bem, qual desses parece assemelhar-se ao que é divino e qual ao que é mortal? Não achas que somente o que é divino tem capacidade para mandar e que só o que é mortal é apropriado para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- A que se parece a nossa alma?
- É evidente, Sócrates, que a nossa alma se parece ao que é divino e nosso corpo ao que é mortal.
- Considere, pois, querido Cebes, se de tudo que acabamos de dizer, se deduz necessariamente que nossa alma se assemelha muito ao que é divino, imortal, capacitada para pensar, ao que tem uma forma única, simplesmente indissolúvel, sempre igual e sempre parecido a si mesma. Pelo contrário, o nosso corpo se parece ao que é humano, mortal, sensível, composto, dissolúvel, sempre em mudança e jamais semelhante a si mesmo. Há alguma razão que possamos alegar para destruir estas conclusões e provar que não é assim?
- Nenhuma, Sócrates.
- Se é assim, não convém ao corpo dissolver-se logo e a alma permanecer sempre indissolúvel, ou em um estado indiferente?
- Eis outra verdade.
- Vês, que depois da morte do nosso homem, sua parte visível, o corpo, que permanece exposto ante nossos olhos e que chamamos cadáver, devia dissolver-se. Não sofre, contudo, de imediato não se dissolve e permanece mesmo intato por algum tempo considerável, principalmente se o morto era formoso e se encontrava na flor da idade. Os corpos embalsamados, como no Egito, duram incólumes por um tempo considerável. Mesmo nos corpos que se corrompem, conserva-se sempre uma parte, como os ossos, os nervos e algumas outras partes da natureza que assim se podem dizer imortais.
- Não é verdade?
- Certíssimo.
- E agora, a alma, ser invisível que vai para um meio semelhante a ela mesma, excelente, puro, lugar invisível, ou seja aos infernos, junto a um Deus cheio de bondade e sabedoria, - uma paragem a qual espero vá a minha alma, se assim quiser Deus, - uma tal alma, com tal natureza não faria mais do que abandonar seu corpo para desvanecer no nada como o crêem a maioria dos homens? Para isto falta muito, meu amigo Simas e meu querido Cebes. Note melhor o que ocorre, então: se a alma se retira, pura, sem nada conservar do corpo, como a que durante a vida não manteve com ele nenhuma relação voluntária, para, pelo contrário, fugir dele, recolhendo-se em si mesma, meditando sempre, ou seja, filosofando bem e aprendendo com isso a morrer - não representa isto uma preparação para a morte?
- Sim, realmente é isso.
- Se a alma se retira neste estado, vai para um ser semelhante a ela, divino, imortal, cheio de sabedoria, junto do qual, livre dos seus erros, da sua ignorância, do seus temores, dos seus amores desenfreados e de todos os males próprios à natureza humana, e goza da felicidade" (Fedon, 79 e 81 a).
171. Imortal porque se move a si mesma. O segundo argumento socrático da imortalidade da alma se apoia em sua natureza de ser por si mesmo movente. Diz em resumo que: aquilo que se move a si mesmo é imortal; ora a alma move-se a si mesma; logo a alma é imortal.
"Toda a alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesmo é imortal. O que move uma coisa e é por outra movido, anula-se uma vez terminado o movimento. Somente o que a si mesmo se move, nunca saindo de si, jamais acabará de mover-se e é para as demais coisas que se movem, fonte do início do movimento. O início é algo que não se formou, sendo evidente que tudo que se forma, forma-se de um princípio. Este principio de nada proveio, pois, que se proviesse de uma outra coisa, não seria princípio. Sendo o principio coisa que não se formou, deve ser também, evidentemente coisa que não pode ser destruída. Se o princípio pudesse desaparecer, nem ele mesmo poderia nascer de uma outra coisa, nem dele outra coisa, porque necessariamente tudo brota do princípio. Concluindo, pois, o princípio do movimento é o que a si mesmo se move. Não pode desaparecer nem formar-se, do contrário o universo, todas as gerações parariam e nunca mais poderiam ser movidos.
Pois bem, o que a si próprio se move é imortal. Quem isto considerar como essência e caráter da alma, não terá escrúpulo nesta afirmação. Cada corpo movido de fora é inanimado, pois que o movimento é a natureza da alma. Se aquilo, que a si mesmo se move, não é outra coisa senão a alma, necessariamente a alma será algo que não se formou. E será imortal" (Fedro, 245).
A dificuldade do argumento da imortalidade da alma a partir da alegação que ela se move por si e move aos corpos apresenta contra si o próprio fato, de que a alma seja um tal ente (vd 164).
Além disso as funções imanentes de conhecer e agir se encontram na dependência dos objetos motivadores. As faculdades da alma são potenciais, e se movem a partir dos objetos (vd).
Aristóteles ao tratar das coisas movidas apelou a um primeiro motor imóvel. Este está em pleno ato, e move sem ele mesmo estar em movimento. Diferentemente, Platão colocava uma alma para mover cada astro, com base no conceito de alma com capacidade própria de móvel.
172. A imortalidade decorrente da sua simplicidade. Outra prova da imortalidade da alma a partir de sua mesma natureza, considera-a indestrutível por ação a agir sobre ela a partir do exterior. Ponderou Sócrates que, sendo a alma simples, nenhuma causa consegue destruí-la.
O texto platônico vem agora de República:
"Sócrates: - Não tem cada coisa o seu mal e seu bem? A oftalmia é o mal dos olhos; a doença o mal de todo o corpo; a manga, o mal do trigo; a podridão, o da madeira; a ferrugem, o do ferro e cobre. Em uma palavra, quase nada há na natureza que não tenha seu mal e sua doença particular.
Glauco: - É verdade.
Sócrates: - Quando o mal ataca uma coisa, a deteriora, acabando por dissolve-la e aniquilá-la?
Glauco: - Sem dúvida.
Sócrates: - assim, pois, cada coisa é destruída pelo mal e pelo princípio de corrupção que traz em si, de sorte que, se o mal não força para destruí-la, nada mais há que o possa fazer, porque o bem não pode produzir este efeito, nem tão pouco o que não é nem bem nem mal.
Glauco: - como poderia ser?
Sócrates: - Se pois, encontramos na natureza alguma coisa cujo mal inerente a torna verdadeiramente má, que não pode porém dissolvê-la e destruí-la , não podemos afirmar desta coisa que naturalmente não pode perecer?
Glauco: - Parece muito lógico, que sim.
Sócrates: - pois não há nada que torne má a alma?
Glauco: - Sim, certamente; todos os vícios que mencionamos atrás: a injustiça, a intemperança, a covardia e a ignorância.
Sócrates: - Haverá um só destes vícios capaz de alterá-la e destruí-la? Cuidado que não caiamos em erro, supondo que, quando o injusto e insensato é surpreendido em delito, seja a injustiça, que é o mal de sua alma, a causa de sua morte. Eis, ao contrário, como se deve encarar a realidade. Adverte que a enfermidade, que é o mal do corpo, o aniquila pouco a pouco, o destrói e reduz ao ponto de não ter sequer a forma do corpo. E todas as outras coisas de que temos falado tem seu mal próprio, que se lhes adere e as corrompe e leve ao extremo de deixarem de ser que antes eram. Não é verdade?
Glauco: - Sim.
Sócrates: - Fazendo agora aplicação disto à alma, é verdade que a injustiça e o outros vícios, em que se alojando e fixando na alma, a corrompem e emurchecem, até que, conduzindo-a à morte, a separam do corpo?
Glauco: - De modo algum: isto não se dá a respeito da alma.
Sócrates: - Por outro lado, seria absurdo dizer que um mal estranho destruiria uma substância que seu próprio mal não é capaz de destruir... Abstenhamo-nos de dizer que nem a febre, nem nenhuma outra enfermidade, nem a degola, nem a retalhação do corpo em mil pedaços, nem o que quer que seja, pode dar a morte à alma, a menos que se faça ver que, pelos males que o corpo padece nestas circunstâncias, a alma torna-se mais injusta e ímpia.
E não toleremos que se diga que a alma ou outra substância perece pelo mal que sobrevêm a uma substância de natureza diferente da sua, se não concorre ali o mal que lhe é próprio...
Logo, é evidente que o que não pode perecer, nem por seu próprio mal, nem pelo mal alheio, deve necessariamente existir sempre; e que, se existe sempre, é imortal" (República, 608 e ss.).
Esta demonstração ainda não considera todas as causas eficientes que poderiam destruir a alma. Esquece-se a hipótese de um Deus criador e conservador, que também poderia ser aniquilador.
IV - Doutrinas éticas de Sócrates. 8310y175.
176. Fundador da ética. Sócrates sempre foi visto como um padrão do ser humano, em especial o bom cidadão. Foi moralmente rígido, porque a boa moral sempre é rígida. Todavia não o foi no sentido da radicalização e nem do ascetismo virtuosista, do tipo chamado santo homem.
Sócrates não foi somente o bom; procurou também a ciência do ser bom, - a ética, a filosofia moral. É considerado mesmo o fundador da Ética como disciplina filosófica, portanto até seu tempo as considerações morais tinham apenas formulações assistemáticas, ao modo dos dizeres sentenciosos. E porque alcançasse o saber moral sistemático, não foi um radical e nem um asceta, mas o homem racionalmente bom.
A Ética de Sócrates é de direito natural; no fundamento das normas positivas há leis não escritas (= ágrafoi nómoi).
A ética ou moral constitui o centrado projeto filosófico do admirável Sócrates. Se antes dele alguns, como Pitágoras no seu tempo como Demócrito e Arquelau, traçaram da Ética, ninguém mais do que ele prestigiou este temário e lhe fez honra pelo belo procedimento pessoal. Dele diz Aristóteles: "Ocupa-se Sócrates das virtudes éticas e com tal objeto pretende definir, universalmente" (Met. 1078).
177. Apesar do eticismo de Sócrates não temos uma linha bem determinada do que é precisamente de Sócrates mesmo e do que é obra de desdobramento da elaboração de Platão.
178. Para Sócrates a lei moral é natural, brotando da mesma natureza como uma sua propriedade.
Não resulta de uma ordem dogmática posterior exterior emitida, ou por Deus, ou pelos homens.
A análise das coisas e das operações humanas mostram que nenhum homem pode senão querer o bem e mesmo quando quer o mal, procura-o na suposição de buscar um bem.
179. Só se quer o bem. A ética socrática é finalistica (ou teleológica) como se depreende dos textos platônicos Apologia e Eutifron, como ainda das informações vindas de Xenofonte.
Uma finalidade a alcançar serve de norma aos atos. Aliás, o caráter teleológico da ética conservar-se-á até Kant (1704-1804), quando este esforçar-se-á em criar uma ética de determinação pura da vontade. Tendo a finalidade como norma, em função à ela construiu Sócrates todo o edifício da ética.
Concretamente a finalidade última dos atos humanos, de acordo com Sócrates, é a felicidade (, Û * " 4 : @ < \ " ). Aliás o mesmo se verá aceito em todos os filósofos, uns acentuando todavia a felicidade do espirito, outros a felicidade sensível.
Provou Sócrates seu eudaimonismo ético por meio de análise aplicada ao desejo humano; este não se dirige para o mal. Orienta-se para o bem, desde que o conheça. Desta adesão e conquista resulta o estado psíquico da felicidade.
"Sócrates: - Não te parece, meu amigo, que todos os homens desejam unicamente o que é bom?
Menon: - Não! Não me parece.
Sócrates: - Afirmas, então, que alguns homens desejam o mal?
Menon: - Sim, Sócrates.
Sócrates- E crês que estes desejam as coisas más por que as acham boas? Ou dizes então que são más, e não obstante isso as desejam? Acreditas, pois, caro Menon, que alguém que sabe que o mal é o mal pode ainda desejá-lo?
Menon: - Creio.
Sócrates: - Mas os que desejam o mal, crêem que ele é vantajoso, ou pernicioso?
Menon: - Há uns que pensam que as más coisas fazem o bem: mas há outros, também que sabem perfeitamente que as coisas más só produzem o mal.
Sócrates: - Quanto aos que pensam que o mal é vantajoso, o conhecem como sendo verdadeiramente o mal?
Menon: - Eu não ousaria afirmar isso.
Sócrates: - Por conseguinte, estes não desejam o mal como tal, pois não o conhecem; desejam apenas o que lhes parece um bem, bem que neste caso é mal. Donde podemos concluir, que os que desejam o mal e o consideram como bem, estão de fato a desejar unicamente o que é bom. Aqueles, pelo contrário, que desejam as coisas más, sabendo que elas são más e só causam o mal, esses sabem que serão prejudicados pelo mal?
Menon: - Isso mesmo.
Sócrates: Mas não pensarão esses que uma coisa prejudicial faz sofrer na medida em que ela é prejudicial? Menon: Claro. Sócrates: - E que homem que sofre é um infeliz?
Menon: - Penso que é assim.
Sócrates: - Ora, dizei-me então, se te parece possível que haja no mundo inteiro um homem apenas que deseje ser infeliz e viver uma vida miserável?
Menon: - Não! Penso que não há ninguém expressamente deseje tal coisa.
Sócrates: - Assim, caro Menon, ninguém deseja expressamente o mal. Que é sofrer? Não é ao mesmo tempo desejar o mal e possuí-lo?
Menon: - É possível, Sócrates, que tenhas razão e que ninguém deseja o mal" (Menon, 77c-78b).
180. Religião. A ética filosófica dos gregos não considera a questão da finalidade externa do ser humano e do mundo, que seria a finalidade a partir de Deus. Quer o mundo seja criado, quer seja plasmado pelo Demiurgo, quer sujeito apenas ao determinismo da vontade de Deus ou dos Deuses, a pergunta do finalismo externo tem de ser feita, - para afirmá-la, ou negá-la.
A finalidade externa envolve a questão do culto e de tudo o que se refere ao que é posto sob a denominação de glória de Deus. O que Sócrates e os gregos em geral estabelecem como felicidade do homem é seu fim interno apenas.
O mesmo Sócrates exerce o culto, mas não instala a pergunta filosófica total sobre o assunto.
181. O utilitarismo. Decorre o utilitarismo naturalmente da ética eudaimonista da felicidade. As coisas são úteis à medida que se prestam para produzir a felicidade. Em outros termos, o bem é medido pelo útil, e o mau ocorre na ação que prejudica a felicidade. Não é o finalismo, mas o eudemonismo que conduz ao interesse pessoal.
Mui diverso é o efeito do finalismo na ética de uma filosofia criacionista; nesta e outra hipótese o bem e o mal são decididos na intenção do Deus criador. Tem a filosofia criacionista como fim ser manifestativa de Deus (isto é, ser a glória de Deus) e secundariamente, mas internamente, a felicidade da criatura. Neste quadro pode surgir também um honesto interesse, mas sem se estabelecer como norma suprema e decisiva da eticidade.
Posto no início um Deus criador, a primeira ação é a de Deus, e este terá uma finalidade em vista antes de efetivar o ato criativo, razão porque a criatura, ao vir para a luz da existência, já vem marcado por uma finalidade que vem do próprio Deus, o agente primeiro.
De outra parte, porém, a criatura não deixa de gozar a felicidade da riqueza de seu próprio ser. Tendo pois como finalidade última e interna, sua mesma felicidade, ou interesse.
Não ocorre bem uma oposição entre a moral socrática eudaimonista e a outra, mas a omissão de um elemento na primeira. Entretanto, esta omissão é tamanha que cria quase um abismo entre as duas concepções, razão porque se há de ser cauteloso ao se compararem as duas.
Não basta pois dizer que só faltava à moral de Sócrates um melhor conhecimento de Deus e da alma para se igualar a moral da filosofia criacionista cristã. A aproximação aparente da moral socrática, com a cristã, vem do fato de haver Sócrates imposto uma hierarquia nos bens que a vontade busca, situando em primeiro lugar os bens do espírito e em último os do corpo. Mas em qualquer hipótese trata-se sempre duma ética hedonista, pois coloca a felicidade em primeiro plano, omitindo-se sobre a finalidade exterior do mundo como um todo.
182. Embora determinando Sócrates a felicidade como fim principal da atividade humana, amenizou o seu eudaimonismo ético pelo estabelecimento de uma hierarquia de bens ou valores. Em decorrência, criou a noção do bem honesto, situando-se acima do hedonismo do prazer meramente sensível, embora sem radicalismos moralistas.
O hedonismo meramente sensível era a posição dos sofistas, que pregavam a aspiração dos prazeres, utilidade e poder.
Esta luta com o hedonismo sofista foi apresentada por Platão em um dos seus diálogos, em que discutem Sócrates e Calícles. Este, de pouco em pouco, vai cedendo e concordando, admitindo que não podemos inclinar-nos a todos os prazeres, visto que, se assim pudesse ser, deveríamos justificar mesmo o prazer que nos causam coisas baixas e vis, como o prazer de coçar-se. A felicidade não pode provir, portanto, de todos e qualquer prazer; mas há satisfações de gênero superior, aos quais inferiores se hão de subordinar.
Mas, qual o objeto que mais do que outra traz a felicidade?
É a sabedoria. Nos diálogos platônicos da mocidade observamos sempre a mesma idéia diretriz; na República (350 b) diz-se "O sábio é bom".
Informa ainda Aristóteles que Sócrates estabelecia "...que todas as virtudes consistem no saber" ("Ética Nicomaco, Ns. Z, 13). No Laques a coragem é dada como ciência, no Eutifron, a piedade, no Cârmides, a sensatez, Protágoras, a virtude.
183. Um balanço dos valores hierarquizados por Sócrates, e que tem no topo a sabedoria, resulta no seguinte esquema:
1- Vantagens exteriores da saúde, da beleza, da riqueza, das honras políticas. Representam o grau inferior e pode o homem passar mesmo sem elas.
2- Prazeres do corpo e da sensibilidade, ligados diretamente aos sentidos. São apreciáveis, mas exigem o regulamento para impedir os excessos.
3- Governo de si mesmo. Liberta o homem do jugo das próprias paixões e dos instintos, submetendo-os à razão. Representa um bem de caráter negativo, ou dispositivo para o alcance de bens maiores. A repressão das paixões e dos instintos efetivamente se apresenta como condição preliminar para dar entrada aos bens espirituais.
4- Sabedoria e virtude. São duas qualidades do homem que têm a capacidade de o tornar feliz. Estes dois bens são considerados de tal modo elevados, que Sócrates os julgou suficientes em si mesmos para produzirem a felicidade, mesmo sem o concurso dos elementos materiais e sensíveis.
Havendo Sócrates estabelecido uma hierarquia de valores, introduz assim também, a noção do bem honesto, um bem qualquer, adquirido sem o respeito a hierarquia não seria um verdadeiro bem, mas apenas o bem utilitário no sentido grosseiro. Por ali se poderá ver de como o utilitarismo socrático não se deve confundir com o de alguns modernos.
Diz Sócrates num diálogo platônico:
"Sócrates: Então, conseguir para si mesmo ouro e prata, eis a virtude, para Menon, hóspede do grande rei! Não te parece, todavia, caro Menon, que seria conveniente acrescentarmos "justa e honestamente?" Ou isso te é indiferente? Se alguém ganhar uma fortuna mediante injustiças dirás que isso também é virtude?
Menon: - Jamais, Sócrates!
Sócrates: - Seria maldade?
Menon: - Sem nenhuma dúvida!
Sócrates: - Portanto, concordas em que à aquisição devemos adicionar a justiça, ou a sobriedade, ou a piedade, ou qualquer outra parte da virtude; senão ela não será virtude, embora, proporcione o que é bom.
Menon: - Sim, pois, de que modo poderia haver virtude sem isso?
Sócrates: - E não pensas igualmente que é virtude abster-se de ganhar ouro e prata quando a aquisição não é justa?
Menon: - Claro que sim!
Sócrates: - Donde se segue, que a pura e simples abstenção desses bens não é mais virtude do que a renúncia dos mesmos, e nós chamaremos virtude a tudo o que se faz com justiça, e vício, o que se faz sem aquelas qualidades?
Menon: - O teu raciocínio me parece irretorquível" (Menon, 78 d-e).
184. O esclarecimento do ato é um destaque da ética socrática. É preciso ter consciência do que é preciso fazer, para que o ato se diga ético.
Mas, Sócrates radicalizou o princípio do esclarecimento moral ao identificar simplesmente a virtude com o saber. Bastaria então conhecer o bem a praticar, para garantir sua prática. E então ninguém buscaria o mal voluntariamente.
É claro ser preciso saber qual o bem a praticar. O que não parece claro, é ser isto suficiente para o praticar e ter a virtude.
O paradoxo socrático está nesta identificação da ciência do bem com a virtude. Não definiu, portanto, Sócrates, a virtude como disposição volitiva, conforme a definição futuro de Tomás de Aquino: "disposição dificilmente móvel, segundo a qual o agente age bem, fácil e agradavelmente" (Suma Theológica I-II a 49 a 1).
185. Na hierarquia dos valores estabelecidos por Sócrates, o mais elevado grau é o da sabedoria e da virtude, de tal modo que ali estaciona a inclinação humana, suficientemente feliz neste estado.
Assim, claramente se reduz a felicidade à virtude. Obtida a virtude, o homem possui a felicidade completa e definitiva.
Marca-se, portanto, a ética socrática por uma recompensa toda ligada à vida presente.
Não coloca o bem supremo do homem numa outra vida. Sem o dizer expressamente, a felicidade plena é a de cada momento.
Embora defenda Sócrates a imortalidade da alma, esta fica provada por razões que se não ligam à questão da necessidade supletiva futura de uma recompensa, ou castigo, mas em virtude das conclusões que se obtêm pela metempsicose, reminiscência e estudo da natureza simples e indecomponível da alma.
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